quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Guaraníes y Jesuítas en tiempo de las Misiones: una bibliografía didáctica


Bartomeu Melià & Liane Maria Nagel. Guaraníes y Jesuítas en tiempo de las Misiones: una bibliografía didáctica. Asunción/Rio Grande do Sul, CEPAG/URI, 1995, 306 pp.

Francisco Silva Noelli
Prof. da Universidade Estadual de Maringá/
Doutorando em Ciências Sociais ¾ UNICAMP


Os estudiosos dos Guarani e das Missões Jesuíticas na Bacia Platina novamente foram brindados por Bartomeu Melià, em colaboração com Liane Maria Nagel, com mais um importante livro. Desta vez foi publicado um completo guia de referência sobre as publicações e documentos produzidos entre 1553 e 1995. Esta obra vem contribuir para a ampliação de um trabalho anterior de Melià, O Guarani: uma bibliografia etnológica, feita em parceria com Marcos Vinicios de Almeida Saul e Valmir Francisco Muraro, (Melià, Saul & Muraro, 1987).

Ambos os livros devem ser consultados em conjunto, pois, além de conterem a mais ampla lista de obras históricas, etnológicas, lingüísticas, arqueológicas, artísticas, biológicas e de medicina, contextualizam o leitor em relação às principais temáticas e linhas de pesquisa sobre os Guarani e as Missões da antiga Província do Paraguai. Ao mesmo tempo, propiciam uma breve noção do estado em que se encontram as pesquisas nestas diversas áreas.

O livro foi publicado pelo Centro de Estudios Paraguayos Antonio Guash (CEPAG), de Asunción, e pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), campus de Santo Ângelo ¾ RS. Foram incluídas 63 ilustrações que apresentam mapas do período missioneiro e atual; portadas e páginas de livros; iconografias que retratam imagens de santos, índios Guarani, cenas do cotidiano nas reduções; planos, fachadas, maquetes e plantas arquitetônicas. Há um índice onomástico e um índice cronológico que visam a rápida localização do assunto de interesse, pois as referências não foram ordenadas alfabeticamente, mas separadas em diversas temáticas.

Um aspecto importante do livro, digno de nota, é a maneira como ele foi ordenado, visando orientar o iniciante diante da imensa estante onde está a bibliografia sobre os Guarani e as Missões. Para os autores a pergunta "qué ay que leer para conocer las Misiones?" é básica para iniciar os estudos sobre as missões. Esta ordenação garante uma economia importante de tempo, pois, considerando a enorme quantidade de títulos existentes, conduz objetivamente o leitor que está começando ao domínio das obras fundamentais em cada temática. E, ao mesmo tempo, também encaminha para as obras que complementam e detalham os temas mais amplos.

Um outro aspecto relevante de Guaraníes y Jesuítas é a abalizada e criteriosa avaliação crítica das publicações, especialmente para os iniciantes, pois o conjunto da bibliografia abriga larga quantidade de trabalhos oportunistas e superficiais, carentes de critérios contemporâneos da Antropologia, História... Esta característica dos textos e notas explicativas de Melià e Nagel, bem além de uma listagem de títulos, em um primeiro momento é um alerta para a qualidade científica das publicações e, posteriormente, possibilita ao leitor um caminho para contextualizar criticamente o que está pesquisando.

O livro foi dividido em duas partes principais, contendo 21 itens ou temas principais de pesquisa, com o objetivo de "mostrar la singular vitalidad de la contínua y repetida lectura del fenómeno de las Reducciones de Guaraníes del Paraguay y ofrecer una guía para orientarse en los diversos aspectos que ya fueron contemplados por investigadores, estudiosos y publicistas". Todos os itens são precedidos por textos de apresentação que resumem seus conteúdos.



Primeira Parte

A primeira parte, que segundo os autores é a mais "troncal", trata no item 001 das Bibliografías e historiografía consideradas por Melià e Nagel como fundamentais. Este item apresenta os guias bibliográficos gerais e específicos, importantes tanto por seus arrolamentos quanto pelas avaliações críticas que contêm. Alguns são importantes por indicarem as bibliotecas e arquivos históricos em que podem ser encontrados diversos títulos, muitos deles raros e de difícil acesso. Além disso, também é apresentada uma lista de endereços de centros de pesquisa que tradicionalmente têm desenvolvido investigações sobre os Guarani e as Missões.

O item 002 apresenta um conjunto de Fuentes contemporáneas, divididas em 1) papéis vários; 2) cartas ânuas, crônicas, expedições e viagens; 3) descrições da vida e sistema das Reduções. Trata-se do conjunto de documentos publicados, em que estão baseadas a maior parte das pesquisas já realizadas, acompanhados de proveitosos comentários, apresentando aos iniciantes as principais fontes de informações sobre os Guarani e as Missões. Esta coletânea inclui as melhores publicações e edições de documentos, tanto pelo tratamento paleográfico quanto pelas cuidadosas transcrições dos textos antigos. Além disso, estas coletâneas documentais propiciam uma série de indicações sobre conjuntos documentais que ainda não foram publicados.

O item 003 inclui as Síntesis históricas, divididas em 1) fontes principais; 2) sínteses modernas gerais; 3) sínteses regionais; 4) sínteses em obras gerais; 5) fontes complementares. As fontes principais são as obras históricas que foram escritas durante o período reducional, em alguns casos, pelos próprios missionários. As demais foram escritas após o término das missões do Paraguai, realizando tanto sínteses históricas como contextualizando uma série de questões relativas a elas. Paralelamente, como notaram Melià e Nagel, uma análise conjunta dessas obras revela a maneira "de historiar", propiciando um interessante campo de comparações entre aspectos teórico-metodológicos e diversas problemáticas que interessaram os estudiosos ao longo dos últimos 300 anos.

O item 004 apresenta o conjunto de trabalhos sobre as Tendencias ideológicas en la interpretación de las misiones. Além das lista de obras, este item possui um breve comentário sobre a postura extremamente tendenciosa e moralista que orienta uma quantidade significativa de trabalhos publicados, inclusive alguns que conquistaram um importante espaço no meio acadêmico. Como dizem os autores, são livros sobre as missões "que ora las exaltaba como lugar de utopía, ora las presentaba como el reducto de un gobierno tiránico; una utopía que podía haber existido o un infierno que nunca hubiera tenido que haber existido". Essa avaliação, que freqüentemente aparece no conjunto da extensa obra de Melià, vem contribuindo decisivamente para alertar os iniciantes sobre esses posicionamentos ingênuos e equivocados e para a melhoria da qualidade crítica da produção historiográfica recente.



Segunda Parte

O item 1.00 arrola o conjunto de obras que abordam histórica, sociológica e etnologicamente El índio Guarani. Apesar da significativa quantidade de trabalhos existentes, ainda se conhece muito pouco sobre o principal sujeito das Missões do Paraguai, assim como a vida cotidiana nas reduções e regiões de contato com os europeus. Como dizem Melià e Nagel, a historiografia missioneira "suele ofrecer de los índios Guaraníes figuras muy estereotipadas". Entretanto, como está indicado nos comentários deste item, os últimos anos vêm revelando uma série de estudos que procuram evidenciar quem era a "principal" motivação da existência das missões.

O item 2.00 contém o conjunto de obras sobre El Paraguay colonial, onde se pode contextualizar as missões na "História" do seu tempo, pois, lamentavelmente, muitos autores trataram da questão desvinculando as missões jesuíticas dos demais eventos que ocorreram paralelamente a sua duração. Melià e Nagel procuram chamar a atenção para as obras que integraram as missões ao contexto de sua época, indicando alguns dos problemas a serem investigados.

O item 3.00 apresenta os trabalhos sobre Los jesuítas en el Perú, en el Brasil y en el río de la Plata. Assim como no caso dos Guarani, apesar da quantidade de publicações existentes, ainda se conhece muito pouco sobre os jesuítas, havendo muito mais estereótipos hagiológicos do que biografias orientadas por métodos históricos. Não há dúvida a respeito das atividades da Companhia de Jesús, porém ela ainda está para ser avaliada com maior profundidade antropológica, histórica, sociológica e política. Pode-se dizer, também, que é necessário incluir as informações biomédicas sobre os padres, pois a maioria era portadora de doenças letais para as populações indígenas, fatalmente devastadas por uma série de epidemias introduzidas por eles ao longo da duração das missões.

O item 4.00 é relativo a Las reducciones: período fundacional, trazendo as principais obras da primeira fase das missões e considerando a ação franciscana, anterior a dos jesuítas. São estudos que mostram as regiões onde foram fundadas as reduções, a cronologia, as principais personagens e alguns dos eventos, objetivos e legislações que regiam estas atividades. Melià e Nagel chamam a atenção para o pouco que ainda se conhece sobre este período e para a necessidade de se desenvolver mais pesquisas.

O item 5.00 é composto pela bibliografia sobre El bandeirismo de captura, apresentando tanto trabalhos que justificam positivamente a ação bandeirante quanto os que as consideram negativamente, cujo conjunto consiste mais em textos de juízo de valores do que estudos históricos. Entretanto, vários desses trabalhos são importantes pelos apêndices documentais e pelas referências a documentos publicados ou ainda depositados em arquivos. Por outro lado, os autores fazem menção à nova geração de pesquisas que vêm sendo publicadas, e que contêm abordagens com objetivos renovados e que estão repensando a ação bandeirante diante de questões econômicas, sociais e políticas dos séculos XVI e XVII. A questão em torno da eficácia das bandeiras ainda não foi satisfatoriamente respondida, especialmente em relação ao processo de captura. Como é que agrupamentos pouco numerosos de paulistas e índios aliados conseguiam dominar as populações Guarani maiores e bem organizadas militarmente? No meu entender, uma das respostas passa pela consideração da ação epidêmica, que devastava, desorganizava e combalia os sobreviventes, facilitando as razias dos paulistas.

O item 6.00 trata das publicações a respeito de Los padres Antonio Ruiz de Montoya, Roque Gonzáles de Santa Cruz y otros jesuítas. Em que pese o nível mais profundo de detalhes, devido à especificidade deste grupo de obras, de maneira geral elas apresentam as mesmas características mencionadas acima no item 3.00. Montoya e Roque Gonzáles foram figuras extraordinárias, assim como outros missionários, mas ainda não foram analisados biograficamente por uma perspectiva que efetivamente os contextualizasse historicamente. Destaco a necessidade de se repensar a questão dos martírios, que nunca foi analisada com uma perspectiva antropológica e fora da perspectiva de historiadores cristãos e/ou preconceituosos, relativizando o encontro de culturas tão distintas.

O item 7.00 apresenta as obras sobre o Urbanismo y arquitectura misionera, publicadas desde o início do século XVIII até o presente, tratando tanto de questões históricas como arquitetônicas e urbanísticas propriamente ditas. Como é assinalado pelos autores, a maioria das obras recentes foram motivadas por trabalhos de consolidação das "ruínas" dos centros urbanos, bem como por estudos arqueológicos relacionados à consolidação e aos estudos urbanísticos. É importante considerar que essas publicações dizem respeito apenas às reduções que sobreviveram à ação bandeirante ou às que foram fundadas após os ataques bandeirantes, com a mudança de suas antigas sedes para outras regiões. Ainda se conhece muito pouco a respeito das edificações da zona rural, das construções nas áreas de criação de gado, dos postos nas fronteiras, das zonas de extração de erva-mate, portos e estradas. Também é necessário mencionar ¾ e o mesmo vale para as obras no item 4.00 citado acima ¾ que a maioria das reduções fundadas no século XVII ainda não foram localizadas geograficamente, havendo muito mais especulação do que pesquisas de campo realizadas com o objetivo de encontrá-las. Apenas as pesquisas documentais e de cartografia de época não são suficientes para localizá-las, pois na maioria dos casos os jesuítas não forneceram dados precisos. A única possibilidade de encontrá-las e conhecê-las urbanisticamente será através da realização de pesquisas arqueológicas orientadas pelos dados encontrados na documentação.

O item 8.00 arrola as publicações sobre o Sistema económico de las misiones, constituídas por obras meramente especulativas, sobre o "comunismo" e "socialismo" nas missões, bem como por trabalhos que realizaram pesquisas gerais e específicas sobre a economia nas missões. Pode-se considerar esta como uma das temáticas que já possui uma estrutura geral razoavelmente conhecida, ainda que pese a falta de uma perspectiva mais antropológica e sociológica para avaliar devidamente como se sobrepuseram os sistemas econômicos indígena e ocidental.

O item 9.00 é composto pelos trabalhos sobre La sociedad missionera: aspectos socio-culturales, dividido em: 1) a língua Guarani; 2) educação; 3) artes plásticas; 4) música e teatro; 5) bibliotecas e imprensa; 6) hábitos e costumes; 7) ciências. É onde se concentram os poucos estudos sobre alguns aspectos da vida cotidiana, com ênfase na vida cultural e na transmissão de conhecimentos europeus entre os Guarani. Poucos documentos de época, como os de Montoya, Sanchez Labrador e Pedro Montenegro, nos fornecem um volume considerável de informações consistentes sobre a cultura Guarani e sua presença dentro das missões. Ao mesmo tempo, ambos os conjuntos contribuem para que se possa perceber a complexidade do contexto missioneiro, poucas vezes considerada de fato pelos pesquisadores.

O item 10.00 é relativo a La sociedad misionera: aspectos religiosos, dando relevo para o conjunto de obras que superaram, pelo menos parcialmente, a abordagem etnocêntrica das questões em torno da religiosidade e da cristianização dos Guarani, pois a maioria "se han limitado generalmente a repetir y comentar las descripciones dos cronistas de época, sin profundizar demasiado las cuestiones teológicas, litúrgicas y pastorales que subyacen en tal modo de vida". Além disso, foram realizados poucos trabalhos com um viés antropológico, especialmente para analisar como é que os Guarani se deixaram reduzir por homens que pregavam a negação de elementos centrais de sua cultura, como a poligamia, antropofagia e as beberagens coletivas.

O item 11.00 contém os estudos sobre La demografía de las misiones; evolución y crisis, que ainda estão iniciando e, como escreveram Melià e Nagel, "no son de se extrañar ni la perplejidad de los investigadores ni la diferencia en sus resultados". Esta questão, excetuando os estudos preliminares de Melià e os mais aprofundados de Ernesto Maeder, ainda é praticamente desconhecida, principalmente para as décadas que antecederam o início das missões e a primeira metade do século XVII. Além da necessidade de se realizar censos na documentação existente, é necessário, à luz das metodologias da demografia histórica da atualidade, que se analise todo o contexto histórico e a situação de contato relativas aos territórios de domínio Guarani, especialmente a ação das epidemias. A pesquisa arqueológica deverá ter um papel importante, tanto para a demografia como para a definição das doenças, principalmente em relação às regiões em que as informações históricas são inexistentes ou escassas.

O item 12.00 apresenta as obras a respeito de Las misiones dentro del estado colonial, dividido em três partes: 1) instituições; 2) governo civil; 3) fronteiras. Os autores chamam a atenção para o fato de que as missões não constituíam um "Estado dentro de um Estado", mas que partilhavam de legislações básicas e que se deve estudá-las contextualizando-as em relação às colônias espanholas. Da mesma forma, em relação às questões de fronteira, especialmente por estarem localizadas em zonas limítrofes entre Portugal e Espanha, Melià e Nagel mencionam a importância de análises que contemplem os contextos geo-políticos.

O item 13.00 mostra uma lista de conjuntos documentais e estudos históricos sobre El Tratado de Madrid (1750) y la guerra guaranítica. De acordo com os autores, a bibliografia sobre o tema, "originada ya com panfletos y pezas apologéticas del tiempo de los sucesos, y la que se fue produciendo com los años en el intento de aclarar o explicar su sentido, es simplemente enorme". É uma temática que, apesar do volume de estudos já produzidos, ainda está aberta a análises geo-políticas, históricas, biográficas, econômicas, antropológicas, geográficas e sociológicas.

O item 14.00 apresenta os trabalhos e documentos sobre La expulsión de la Compañia de Jesus de las reducciones de Paraguay (1768). Temática que atraiu diversos interesses, acadêmicos e populares, segundo os autores, e que contém basicamente estudos sobre "el modo y las circunstancias como se llevó a cabo la expulsión de los Jesuítas de las Reducciones". Poucos dentre esses trabalhos "se refieren al momento que tantas consecuencias iba a tener en toda la vida colonial de la región y que sin duda fue brecha para grandes modificaciones culturales y geopolíticas en la región".

O item 15.00 arrola publicações a respeito de Las misiones después de los jesuítas, divido em: 1) fontes principais, 2) viajantes e visitantes. De acordo com os autores, a bibliografia produzida sobre a temática é notável, produzindo pesquisas de boa qualidade. De modo geral, quase todos tratam das mudanças administrativas, legislativas, materiais e humanas que ocorreram na região das missões, especialmente com a remoção, eliminação física e assimilação praticamente total dos Guarani. Todavia, trabalhos que estão em fase de elaboração no Rio Grande do Sul vêm mostrando que na periferia dos "sete povos" ainda vivem vários remanescentes dos Guarani missioneiros.

O item 16.00 contém os títulos relativos à Arqueologia "missioneira", desenvolvida nas últimas três décadas. Trata-se de um conjunto de estudos que vem contribuindo decisivamente para detalhar aspectos da vida cotidiana nas reduções, bem como para contribuir para o conhecimento do uso do espaço, urbanismo, arquitetura, cultura material, organização social, atividades econômicas e de outros elementos. É um campo de trabalho com excelentes perspectivas, cuja crescente produção revela uma considerável diversidade de objetos de pesquisa.

O item 17.00, fechando o livro, trata das publicações com a intenção de divulgar ao público em geral aspectos genéricos sobre as missões, denominado Visita a las misiones.

Conclusão

Observando os 21 itens contemplados no livro, pode-se concluir que Bartomeu Melià e Liane Maria Nagel realizaram uma efetiva, crítica e lúcida contribuição ao estudo dos Guarani e das Missões Jesuíticas. Como instrumento de orientação à pesquisa, cuja virtude maior é tornar oportuno seguras opções aos iniciantes, a exemplo d'O Guarani: uma bibliografia etnológica, deverá naturalmente assumir um destacado lugar na frondosa "árbol" bibliográfica sobre essas temáticas.

A volumosa soma de títulos serve, ainda que indiretamente, para alertar àqueles que pretendem pesquisar sobre os Guarani e as missões: é necessário conhecer e estudar o máximo possível de trabalhos existentes! Isto é exclamado, pois, infelizmente, ainda é muito comum a publicação de trabalhos com revisões parciais e incompletas, sem contar com a generalizada falta de atualização antropológica, sociológica... Ao mesmo tempo, é necessário que o estudioso esteja plenamente inteirado das possibilidades teórico-metodológicas contemporâneas das diversas disciplinas que podem viabilizar o desenvolvimento de suas pesquisas. Caso isto não ocorra, continuará havendo subprodutos moralistas e incompletos para engrossar a seção de títulos que lamentavelmente poluem a vasta bibliografia existente e que redundam em desperdício de energia e tempo de pesquisa.

Bartomeu Melià e Liane Maria Nagel acertaram em cheio, mais uma vez, proporcionando para a comunidade de estudiosos experientes e iniciantes uma valiosa obra para conhecer ainda mais os Guarani e as Missões do Paraguai.

Bibliografia

MELIÀ, B.; SAUL, M.V.A & MURARO, V.F.
1987 O Guarani: uma bibliografia etnológica, Santo Ângelo, Fundação Nacional próMemória/ FUNDAMES.

MELIÀ, B. & NAGEL, L.M.
1995 Guaraníes y jesuítas en tiempo de las Misiones: una bibliografía didáctica, Asunción/Santo Ângelo, CEPAG/URI.

Revista de Antropologia

Rubro Veio – o imaginário da restauração pernambucana


Evaldo Cabral de Mello. Rubro Veio – o imaginário da restauração pernambucana. 2a. ed., Rio de Janeiro, Topbooks, 1997, 47

Stélio Marras
Mestrando do Departamento de Antropologia – USP

"Não ando longe de pensar que, nas nossas sociedades, a História substitui a Mitologia e desempenha a mesma função, já que para as sociedades sem escrita e sem arquivos a Mitologia tem por finalidade assegurar, com um alto grau de certeza – a certeza completa é obviamente impossível –, que o futuro permanecerá fiel ao presente e ao passado."
(Claude Lévi-Strauss)1

Evaldo Cabral de Mello empreende esforço admirável para apresentar ao leitor o debate e as críticas que se foram seguindo ao longo dos decênios e séculos em torno das obras da crônica e da historiografia pernambucanas, estas que estão na base do imaginário nativista que as manipula, recorta, obscurece, enfatiza ao sabor dos tempos, à urgência que o tempo reclamava. Destarte, o autor investe-se do juízo de historiador assinalando a série de interpretações enviesadas da apropriação nativista da história.

O fato é que uma coisa apenas se realiza supondo-se a outra – ele não identificaria os meandros da decupagem nativista se não dominasse, de antemão, a matéria-bruta (digamos assim) do conhecimento de causa. Exatamente por isso afirma que as "entrelinhas (...) resultam tão ou mais eloqüentes que as linhas; o não-dito tanto ou mais que o dito"(:113). Rubro Veio dedica-se justamente à análise da apropriação da história pernambucana ao tempo em que, assim o revelando, revelará o negativo da imagem – esta última fase despende de uma química muito própria, que é a química do historiador. O ponto é que Evaldo Cabral de Mello quer surpreender o imaginário da restauração pernambucana acompanhando-o pari passu na diacronia. Esse trabalho que enreda a microscopia da minúcia historiográfica à macroscopia que identifica – sempre a partir do primeiro material – os elementos repetitivos; esse trabalho, caros colegas de profissão, deveria nortear-nos a todos.

Foram as crônicas luso-brasileiras que "versaram as guerras holandesas" as que serviram de fonte para a historiografia nativista. O autor de Rubro Veio aqui considera as finalidades políticas das obras; coloca a crônica ou o texto historiográfico contra o contexto em que foi produzido. Assim é que, do texto ao contexto e de volta ao texto2, entende que, por exemplo, o livro de Manoel Calado, o Lucideno, "respira a experiência direta dos acontecimentos"(:89) e, da mesma forma, compreende o "seqüestro" de que foi vítima o mesmo Lucideno – quer dizer, o livro não disse o que o nativismo extemporâneo esperava que dissesse, ou, o que no final dá no mesmo, disse o que não se esperava. Pois são as condições objetivas que regiam a difusão das obras, as forças em campo, como as facções eclesiásticas ou o poder de convencimento da narrativa junto aos interesses do Estado – isto que Cabral de Mello exemplarmente ensina enxergar.

Isto se vai percebendo logo nas primeiras das 473 páginas do livro. O corpo documental de que se serve e a argúcia com que articula tantas fontes – e tantas de natureza e procedência tão diversas – deverão impressionar qualquer jovem historiador. Para quem se interessa por Pernambuco colonial e imperial o autor é certamente imprescindível3.

Identidade

O imaginário da Restauração, dada a sua força e atuação, significou por conseguinte a "experiência fundadora da identidade provincial" (:20). Rubro Veio defende a tese de que, forjada a resistência anti-holandesa, um imaginário muito próprio, pernambucano, precipitou-se historicamente das lutas contra os invasores flamengos, da luta contra os mascates e depois contra o Estado reclamando independência. A designação de "nobreza da terra" substitui o que, 60 ou 70 anos antes na colônia, eram as "pessoas principais". Com isso, a idéia de "nobreza da terra" muito deve às guerras holandesas que forçaram uma consciência identitária, "fazendo vir à tona, com mais vigor do que seria o caso na rotina da vida colonial, as diferenças entre o local e o metropolitano"(:165). Mas, passado o século XVII e a urgência do momento contra os mascates, essa pretensão nobiliárquica haveria de ser desfigurada, ou melhor, deslegitimada no século seguinte, quando a oposição praieiros e "guabirus" reordenaria o imaginário, submeteria-o a novo recorte inflando-lhe algumas imagens em detrimento de outras.

Destarte, pela época da Independência, cujo inimigo brasileiro agora era Portugal, aparece uma "nostalgia do Brasil holandês", e "descobria-se a modernidade da experiência holandesa", esta que se via nos benefícios do "protestantismo, as vantagens do regime republicano e representativo de que gozava a metrópole, os proveitos da liberdade de comércio, que lhe haviam dado uma incomparável prosperidade, e a energia e a capacidade de iniciativa de uma raça que mantivera sua pureza étnica"(:382-3). Nassau é entronado.

Abre-se aqui ocasião para reflexões propriamente antropológicas. Senão, vejamos.

Esse acervo de símbolos, imagens e valores comuns, o imaginário da Restauração, emerge da memória social em momentos de confronto, e põe-se a reclamar uma identidade própria que, por sua vez, não é autodefinidora, quer dizer, não se erige no vazio, não fora de um contexto situacional. Aqui, é o estruturalismo da lingüística de F. Saussure e R. Jackobson, ou da etnologia de Lévi-Strauss, que melhor explica o fenômeno.

De fato, um elemento apenas ganha significado em contexto, seu sentido está conforme sua disposição relacional. O caso dos pernambucanos parece-me paradigmático. A situação de confronto e contraste, primeiro contra os batavos e depois contra os portugueses radicados na província (os mascates), define-se como uma situação de etnicidade. A idéia do que seja pernambucano, bem mostra Cabral de Mello, varia ao longo do tempo. Com efeito, varia conforme o contexto. É a rede significante, mutável historicamente, que confere sentido e significado ao elemento nela inserido – no caso, a idéia do que seja ser pernambucano.

Manuela Carneiro da Cunha delineia claramente os mecanismos que implicam no processo da etnicidade4. Esta é, pois, situacional, contrastiva, opositiva e política. Ora, vimos com Cabral de Mello o quão politicamente forjou-se o imaginário restaurador. Com isto, depreende-se que a identidade pernambucana muito derivou das situações de etnicidade a que os pernambucanos teriam se submetido ao longo das sucessivas situações conflitivas em que se viram enredados. Então, para o caso em tela, dir-se-á que as demandas étnicas postas pela situação constrastiva (contra os flamengos, contra os reinóis, contra os mazombos, contra os mascates, contra o Império) forneceram os tijolos, talvez os mais firmes, a construir a identidade pernambucana.

Realmente, o que se queria por "nobreza da terra" ligava-se ao colonizador aristocrático Duarte Coelho, cuja aristocracia, na já aludida prova real da história, é deveras suspeita. Mas este não é critério pertinente ao imaginário pois, a despeito da verdade histórica, "desde a segunda metade do século XVII, a nobreza dos colonos duartinos se constituíra num dos mais glosados tópicos do imaginário nativista"(:179). E esta verdade é inelutável. Mais do que isso, a crença nela gera a força motriz que empenha o espírito pernambucano na sua gesta – a restauração e o reclame de privilégios.

O popular e o estamental nos entremeios do imaginário restaurador

O autor adverte que fará uso do conceito de imaginário segundo a acepção de C. Castoriadis "no seu L’Institution imaginaire de la societé (Paris, 1975), para quem o imaginário não desempenha o papel de uma superestrutura ideológica, de um epifenômeno, mas corresponde a uma dimensão constitutiva e reprodutiva das próprias relações sociais, isto é, ao processo pelos qual os grupos sociais se instituem como tais". Ainda na formulação de Castoriadis, Cabral de Mello adota o entendimento de que "nesta expressão pode-se englobar uma ampla faixa de conteúdos ideológicos que inclui desde a invenção absoluta, como a falsificação histórica, até os simples deslocamentos de significado, mediante os quais o simbólico, linguagem do imaginário, vai criando uma sucessão interminável de conotações"(:17).

Contraponto da imaginação popular "que representou o período holandês com as cores do maravilhoso e até do sobrenatural"(:34) mas em confluência com a "memória estamental e corporativa" que, juntos numa só moldura, conformariam o imaginário restaurador de fato, o autor faz alusão logo no prefácio ao historiador italiano contemporâneo Carlo Ginzburg quando se refere à idéia da "circularidade cultural" entre o erudito e o popular, as "fecundas trocas subterrâneas" que afinal esvaziam a abordagem dicotômica entre alta e baixa cultura.

Quanto ao imaginário, idéia muitas vezes evasiva – eis um problema, parece-me, insuficientemente problematizado. O fato é que esse produto do conceitual antropológico, tão útil e fecundo, é também escorregadio quando dele se aproxima e quer-se apalpá-lo. Com efeito, o termo pode muito bem prestar-se a escamotear conflitos de interesse entre setores sociais que, não obstante, se reduzem semelhantes sob esse mesmo "guarda-chuva". Abaixo dele, pobres e ricos, brancos e pretos, livres e escravos se irmanam num mesmo compósito de imagens, fluido e sem limites bem definidos, desvanecendo assim divergências profundas entre eles. (Veja que bom instrumento para uso enviesado do conservadorismo – não inspirará cuidados?)

Quando se pensa em imaginário – seja o de uma nação (o imaginário brasileiro, por exemplo), seja o concernente ao de uma região (a pernambucana, no caso em questão) – supõe-se sua constituição afirmada em elementos de igualdade que amalgamam sob si o grande monocultor escravagista e o homem livre sem eira nem beira ou, para uma outra oposição, a burocracia pública e os clérigos. Seria o caso pernambucano?

Pois, quem são esses nativistas?
Eis o que me causou certo desassossego na leitura do livro. A quem serviu esse imaginário? Por quem foi elaborado? Não seria razoável afirmar que o "sentimento nativista" seja propriedade exclusiva da açucarocracia, da "nobreza da terra" ou da Igreja Católica contra-reformista. Ora, mas nessa sociedade de clivagens sociais tão marcadas – como já desde a sua formação luso-brasileira na colônia escravocrata –, é enorme o abismo que separa os interesses entre os poucos que instituem e detêm a ordem econômica e política e os que não se enquadram aí.

Por exemplo, qual a abrangência social do "tempo dos flamengos"? Ou por outra: será possível estender e homogeneizar a memória social desse tempo? "Não é possível avaliar a memória do ‘tempo dos flamengos’, em termos do conjunto da população pernambucana, mas cabe assinalar desde logo que certas camadas ou grupos sociais mantinham acesa a recordação da experiência (...)" (:33)

Cumpre saber em quais camadas se aloja preferencialmente essa memória. Não haverá de ser acusado de imaginoso ou conspiratório quem entender que o sentido forte e prático dessa memória atende aos interesses da "nobreza da terra", por suas pretensões nobiliárquicas, e aos das ordens religiosas, seu "desejo de fazer valer junto às autoridades régias os serviços, materiais e espirituais, por todos prestados à restauração"(:34). Veja que o autor está atento em anotar a apropriação política de cada um dos setores sociais que evocavam o sentimento nativista. Sem embargo, não há muito que relativizar ou dissimular: trata-se de um construto que serve diretamente a fins políticos socialmente localizados, imediatos e urgentes. Está em jogo o controle social da açucarocracia pernambucana que se vê ameaçada no século XVII pelos flamengos e no XIX pelos mascates; da parte das ordens religiosas, é a missão da contra-reforma que está em campo contra os protestantes holandeses, e o status de poder que angariaram na Colônia. Numa palavra, a restauração constituía a gesta da "nobreza da terra".

Um exemplo do próprio Cabral de Mello. O autor alude às festividades que alimentavam o episódio da restauração. Eram as "festas da restauração", como as criadas em torno de Nossa Senhora da Estância e Nossa Senhora dos Prazeres. A primeira logo sucumbiu no esquecimento. Já a última, de forte irradiação popular, afinal desvincula-se da origem para a qual foi criada – "à memória dos soldados que haviam tombado nos montes Guararapes em 1648 e 1649" – e torna-se "um culto marial à imagem da Virgem" (:52).

Ainda, o imaginário da restauração elegeu a "tetrarquia" que teria logrado vencer os holandeses; eram eles: "o reinol Vieira, o mazombo Vidal, o índio Camarão, e o negro Henrique Dias"(:196). Cada qual teria dado sua "contribuição dos grupos étnicos às lutas contra os flamengos e a unidade supra-racial que simultaneamente forjara a restauração e fora forjada por ela" (:53-4). Parece harmonioso e livre de preconceitos, mas não se tratava de uma situação exatamente confortável incluir no "panteão restaurador" a figura de um preto, de um índio ou, quiçá, de um mestiço – "o imaginário nativista não soube ou não quis entronizar um herói mestiço no ‘panteão restaurador’"(:223). Homens pardos e mestiços dos contingentes que lutaram contra os holandeses sequer eram reconhecidos como homens de cor, pois que tal atributo feriria o imaculado e aristocrático "panteão"5.

Pois então, como daí supor que o imaginário restaurador – certamente tendo seus maiores efeitos circunscritos nas esferas estritas da oligarquia escravagista do açúcar – pudesse valorizar o amálgama das raças? Quer dizer, Cabral de Mello destaca essa idéia como um topos recorrente no discurso nativista mas, tal discurso como tal imaginário, ambos se punham a serviço da açucarocracia. Parece-me, muito mais, que o elogio multirracial (talvez menos recorrente do que queira o autor) surge de forma muito tímida e certamente enviesada, já que se trata de recrutar homens – livres e escravos, negros e mestiços, todos desclassificados – a fim de somar contingente para os conflitos armados.

Esse imaginário restaurador, objeto da lente de Cabral de Mello, enche-se da "representação ideológica" não evidentemente da senzala, mas da casa-grande do açúcar. É o autor que nos diz da gestação do "discurso político do primeiro nativismo pernambucano, isto é, a representação ideológica elaborada pela açucarocracia"(:105); que: "Desde 1654, a bandeira da restauração tornara-se a bandeira das reivindicações categoriais"(:154).

Pergunto-me: que categoria legítima tinham os "homens livres" e escravos a reivindicar coisa qualquer? Na formação social brasileira – lembram-nos argutamente Maria S. de Carvalho Franco6 ou Laura de Mello e Souza7 –, esse contingente de "homens livres", descolados da estrutura colonial bipolar, não eram nem senhores nem escravos, mas "desclassificados". É certo que os movimentos insurretos populares da Colônia e do Império seriam originários dessa gente que vivia mais ou menos à margem da grande e monolítica estrutura política e econômica do Brasil. Menos certo, creio eu, é imaginá-los engajados de corpo e alma numa missão restauradora do Império luso.

Numa palavra, de tudo o que no livro escapa do tema e toca à "populaça", nada registra – não com convicção – um engajamento ideológico dessas fileiras à causa nativista8. A noção de "imaginário", segundo entendo, supõe certa agregação social para além de conflitos de classes ou categorias sociais. Bem, diga-se a verdade, Cabral de Mello apropriadamente focaliza um imaginário específico, "o imaginário restaurador", e com isso já restringe a amplitude social, pois que a restauração e mesmo o nativismo agendavam interesses certamente pouco entusiasmantes para os desclassificados. O problema está no silêncio do autor sobre o problema. Temo que a leitura um pouco menos atenta poderá entender que o imaginário nativista pernambucano arregimentou o "povo" para a sua causa. E isso, a despeito evidentemente das exceções, não convenceria facilmente.



Santo Antônio, santo mediador

Mas, perguntar-se-ia: o abismo que separa a casa-grande da senzala não encontraria nenhuma comunicação, nenhuma continuidade? Bem, não é isto o que tento dizer aqui, pois que, se o dissesse, estaria reafirmando a já tão mau propalada – e devidamente – dicotomia entre, por exemplo, o erudito e o popular, ou a alta e a baixa cultura, como se fossem esferas autônomas e incomunicáveis. Brilhantemente, Gilberto Freyre já cuidou de identificar o trânsito entre senhor e escravo – a bem da verdade, entre senhor e escrava e entre senhora e escravo, trânsito sexual que funda o mito (no sentido antropológico do termo) da harmoniosa miscigenação racial brasileira.

Entretanto, sem dissimular, o problema é assim mesmo escorregadio. Diga-se de uma vez: que uma e outra categoria social se viam juntas num mesmo universo simbólico, uma e outra (uma e outras, seria melhor) se faziam no espelho, é coisa que não deve levantar suspeita. O ponto é que, não por isso, elas estavam congregados nos mesmos interesses. Pois, se fosse assim, no limite, terminaríamos achando que o escravo afinal aceitava de bom grado sua posição – o que seria uma sandice. Com isso resta dizer que o abismo social que os separa – e a seus interesses – não exclui o universo simbólico que, se não os irmana, ao menos os põe juntos aos olhos teóricos.

Mas não seria pouco. Pensemos, com o texto de Cabral de Mello, algum ponto mediador entre "nobreza da terra" e "povo". E certamente aí a religiosidade deve cumprir papel decisivo. Com efeito, o autor notadamente observa a "preeminência no catolicismo popular" da figura de Santo Antônio. (:311). "Devido à popularidade de Santo Antônio no Pernambuco ante bellum, seu patrocínio da insurreição restauradora impôs-se naturalmente à sensibilidade religiosa da gente da terra"(:308).

Santo Antônio estava no centro do "imaginário religioso da restauração"(:320). Da popularidade que logrou angariar nos segmentos sociais além-casa-grande, passou logo à "santo militar", indo à frente nas batalhas com aparições e fantásticos milagres. Eis a comunicação que faltava. Pois a classe clerical, com seus padres e beatos, muito provavelmente mediou as esferas – terá sido a classe tradutora. Santo Antônio de fato parece ligar mundos rigorosamente distintos em seus interesses radicais.

Não se retira a veraz tese amalgamadora de Casa-grande e senzala de Gilberto Freyre, que este não é o caso (e as dimensões, de qualquer maneira, não se excluem). Dizendo melhor (mas quem melhor o diz é o próprio Gilberto Freyre), é no domínio sexual, mas tanto quanto no religioso, que mais nitidamente e, sobretudo mais intensamente, vê-se operar a miscigenação. O trato com o terreno estritamente político requer mediações próprias. Isto é o que resta assinalar aqui.

História e Mito
O imaginário da restauração expressa, nada menos, as formas nativistas de historiar o evento da invasão holandesa. Cabral de Mello considera o período de 1654 à 1854, período cronológico de que trata o livro, durante o qual vigorou a força da visão de mundo nativista e, "além do qual divisa-se a definitiva integração da província na ordem imperial e a agonia do nativismo como força política (...)"(:21).

Neste registro, ponho-me a pensar no imaginário nativista como ascensão e queda de um mito. E, por conseguinte, na história como material produzido para uso mítico. Lévi-Strauss trata exatamente desse uso no capítulo designado "História e dialética" n’O Pensamento Selvagem9. Hayden White, de sua vez, e no coro contemporâneo que se incumbiu de desqualificar o conhecimento moderno – identifica n’Os trópicos do discurso10 uma espécie de um impulso inato do historiador para a mitologização; afinal, todo e qualquer autor olha o passado segundo suas próprias concepções, essas eivadas de representações, juízos de valor e ideologias. Situação irremediável, nem ao menos se lhe é dado acesso ou controle disso, pois que tais determinações situar-se-iam no "inconsciente" (freudiano).

O ponto é: em que medida, rigorosamente, podemos falar da história como mito ou impulso para mitologização? Ao cabo, penso que o problema leva imediatamente à retomada do que conceitua-se mito. Pois, forjado para emoldurar a apreensão dos parâmetros indígenas, no contraponto das referências não-ocidentais, o termo retorna para seus criadores e os submete agora às suas realidades, que são realidades históricas. A imagines mundi do Ocidente se realiza na história?

Por ora, não devo avançar além das interrogações.

Notas marginais
Menos entusiasmante pareceu-me um certo economicismo mecânico que Cabral de Mello parece usar na interpretação – para citar pontualmente o episódio que me gerou o incômodo – da distinção entre Bahia e Pernambuco quanto à permeabilidade social que ambas províncias receberam os mascates. (Estaria o autor justamente caindo na armadilha fácil da sobrepujança do domínio econômico na interpretação da vida social?)

Porque, diz ele: "Para compreender por que na Bahia houve acomodação e em Pernambuco, conflito [referindo-se ao embate pernambucano da Guerra dos Mascates], seria necessário dispor de uma informação mais aprofundada sobre o que se passava ao nível dos mecanismos de apropriação do excedente da produção escravista"(:158). E ressente-se de que "Infelizmente o estudo da pesquisa histórica não proporciona uma descrição segura no tocante a duas variáveis essenciais, a evolução do preço dos escravos e do crédito no Recife e em Salvador na segunda metade do século XVII e começos do XVIII". A resposta ao problema viria de "séries estatísticas suficientemente completas e homogêneas"(:159). A despeito do equívoco, logo em seguida dá sinais de remissão: "Estas limitações que se antepõem ao conhecimento histórico, sanáveis umas, outras talvez insuperáveis, não devem inibir encetar a investigação ali onde ela pode dar resultados imediatos" e, entre outras possibilidades, cita aquilo a que "os historiadores costumam designar por ‘atitudes mentais’, ‘representações coletivas’ e ‘imaginário social’. Mas, vã desculpa, torna ao porto seguro de sua seara: "Em todo caso, a comparação dos modelos baiano e pernambucano indica que uma teoria do conflito entre a grande lavoura e o comércio no Brasil colonial deve partir do reconhecimento da pluralidade de situações que prevaleceram nos principais centros de produção escravista"(:159).

Pergunto-me por que se deve necessariamente partir dessa relação do "centro de produção escravista" e o comércio colonial para interpretar o aceite do mascate numa e noutra capitania? Por que esta variável teria assim tanto poder de determinação? Aqui, já não estamos tocando no central do livro – trata-se de uma observação de margem –, mas é inevitável pôr em suspensão os predicados desse paradigma, até já suficientemente combatido, esse o de atribuir os efeitos sociais a causas estritamente de ordem econômica, "sobreposições" diretas que, no mais das vezes, muito dissimulam e pouco esclarecem.

Outro ponto levantado por Cabral de Mello na altura da página 326 interrompe-me a leitura devota. Sem escolha, devo aplicar uma ligeiríssima – mas tão desconfortável – aferroada no autor – entenda-se que é o que me cabe por dever de "convicção" (mas o faço para de uma vez dar fim ao tom azedo já começado). Pois bem, ali, meio sorrateiramente, Cabral de Mello distingue a historiografia contra o "escrúpulo etnográfico" de um "certo relativismo, que não afeta, contudo, a convicção última do historiador de que é possível separar o natural e o sobrenatural, a verdade objetiva da ganga do extraterreno". Bem, o protesto particularmente antropológico contra tal entendimento bem podia iniciar seu discurso repetindo a corretíssima sentença de Clifford Geertz segundo a qual o imaginário é tão real quanto o próprio real. Mas, de minha parte, apenas gostaria de ilustrar o oposto com o próprio – farto e instigante – material de que faz uso o autor no Rubro Veio

O exemplo é com Santo Antônio. Se ele de fato não teria realmente aparecido à frente do exército restaurador, ele contudo – isto a seguir os relatos que o autor colheu e vigorosamente ordenou – estava muito vivo e real na mente dos que julgaram tê-lo visto. E se o santo teve o papel que Cabral de Mello nos faz acreditar ter tido, então será mais do que justo deduzir que Santo Antônio cumpriu missão fundamental a inflamar o ânimo e a coragem daqueles que se embrenharam na mata contra os batavos. Quer dizer, o "sobrenatural" acha-se aqui inextricavelmente vinculado ao "natural".

Mas, dito isto, a crítica resigna-se e diminui-se perante o livro que é, afinal, uma dessas obras raras a cumprir a dupla finalidade de pôr-se acessível à leitura leiga ao tempo em que ensina – cá para os de dentro – o que deve ser uma pesquisa laboriosa, extremamente bem fundada e, como se fosse pouco, muito bem redigida.

Notas

1 Mito e significado, Lisboa, Edições 70, 1981, :62-3.

2 Para usar da fórmula de Robert Darnton, professor de História em Princeton (EUA) que se utiliza de métodos da Antropologia para a sua "história de tendência etnográfica". Assim escreve na apresentação de O grande massacre de gatos (Rio de Janeiro, Graal, 1986, :17): "O método antropológico da História tem um rigor próprio, mesmo quando possa parecer, a um cientista social tarimbado, suspeitosamente próximo da literatura. Começa com a premissa de que a expressão individual ocorre dentro de uma estrutura fornecida por nossa cultura. Ao historiador, portanto, deveria ser possível descobrir a dimensão social do pensamento e extrair a significação de documentos, passando do texto ao contexto e voltando ao primeiro, até abrir caminho através de um universo mental estranho."

3 Note-se pelas suas publicações: Olinda restaurada – Guerra e açucar no Nordeste, 1630-1654 (1975), O nome e o sangue – Uma fraude genealógica no Pernambuco colonial (1989), A fronda dos mazombos (1995).

4 Aluna e discípula do mentor estruturalista C. Lévi-Strauss, dialoga com autores como M. Weber, F. Barth e G. Balandier, entre outros, e assume um ponto de vista teórico sobre a temática etnicidade/identidade. Cf. Negros estrangeiros, São Paulo, Brasiliense, 1985.

5 Henrique Dias, negro, tinha posição inferior no panteão, como Camarão, este de raízes indígenas. Nas palavras de Loreto Couto (Desagravos do Brasil e glórias de pernambuco), cronista do séc. XVIII e fonte de primeira ordem para o imaginário da restauração, Henrique Dias reunia lá seus méritos pois ainda "que sendo preto soube com o esforço do ânimo e maravilhosa constância emendar o defeito da natureza" (:225).

6 Homens livres na ordem escravocrata, São Paulo, IEB, 1969.

7 Os desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII, Rio de Janeiro, Graal, 1982.

8 O viajante Varnhagen, extemporâneo, escreve na segunda metade do séc. XIX que as guerras holandesas teriam prodigiosamente feito aproximar classes frente ao inimigo comum, como o senhor ao escravo ou reinóis e nativos – anota Cabral de Mello à página 367. Não sei de onde o viajante tirou a idéia, se leu algum documento hoje inacessível ou se andou repetindo o que porventura ouvira, mas parece muito mais uma conjectura teórica do que uma assertiva fundada em investigação.

9 Campinas, São Paulo, Papirus, 1989.

10 São Paulo, Edusp, 1996.

Revista de Antropologia

Imagens da colonização. A representação do índio de Caminha a Vieira

Ronald Raminelli. Imagens da colonização. A representação do índio de Caminha a Vieira. São Paulo/Rio de Janeiro, Edusp/Fapesp/Jorge Zahar, 1996, 186 pp..

Alessandra El Far
Doutoranda do Departamento de Antropologia – USP

Comentava Michel de Montaigne em "Dos canibais", publicado no ano de 1580: "Tantos personagens eminentes se enganaram acerca desse descobrimento que não saberei dizer se o futuro nos reserva outros de igual importância"1. Não é difícil perceber que o ensaísta francês estava se referindo, neste pequeno trecho, à descoberta do Novo Mundo. Afinal, tratava-se da aparição de terras inéditas carregadas de uma realidade completamente diversa da experiência européia. No entanto, para além do evento, o autor aponta aqui algo de importância similar, ou seja, o fato desse ocorrido ter fermentado uma intensa e abrangente discussão filosófica e teológica ao longo de inúmeras décadas. Apesar de Montaigne estar escrevendo no final do século XVI, estas especulações, acerca da América e seus habitantes, atravessaram todo o XVII, permanecendo ainda latentes no Iluminismo.

Dos poucos trabalhos feitos no Brasil referentes à Colônia, e em específico sobre o impacto de duas culturas tão díspares e suas conseqüências nos debates intelectuais em voga na época, certamente podemos fazer menção ao livro de Ronald Raminelli. Em Imagens da colonização, resultado de sua tese de doutoramento em história, o autor escolhe como tema de análise um flanco pouco explorado pelos historiadores e antropólogos: a polissemia da representação do índio no imaginário europeu, tendo sempre em vista o contexto das relações coloniais.

Para tal empreitada, Raminelli levantou um rico material de pesquisa em bibliotecas e arquivos, no Brasil e no exterior, que não só perpassou as cartas jesuíticas e os tratados filosóficos, como também recuperou uma vasta iconografia produzida no período. E foi exatamente diante do confronto entre esses dois tipos de fonte, ou seja, entre texto e imagem, que o autor percebeu uma chave original de interpretação. Ao invés dessas imagens terem por referência os escritos dos europeus que aqui estiveram, elas dialogavam com muitos dos estereótipos que perambulavam pelo imaginário do Velho Mundo. Nos desenhos de época, os nativos perdiam suas especificidades para assumir o aspecto de bruxos, feiticeiros, demônios e homens selvagens. Esse processo, na visão do historiador, além de reforçar os projetos coloniais, assinalava a dificuldade dos conquistadores em compreender uma nova realidade cultural.

O autor inicia o livro dissecando alguns dos princípios teológicos que procuravam dar aos ameríndios e aos europeus a mesma origem, com a intenção de mostrar que apesar das evidentes diferenças presentes na língua, na cor da pele e nos costumes, os "novos habitantes" possuíam a mesma disposição para receber os ensinamentos divinos e a salvação. Ignorando qualquer relato nativo sobre a gênese no território americano, o padre Simão de Vasconcelos, por exemplo, segundo o relato de Raminelli, chegou a conceber que os índios provinham de uma ilha chamada Atlante, localizada no mar Mediterrâneo, de extensão gigantesca, maior do que a Ásia ou a África, a qual havia sido inundada pelas águas do oceano. Em meio a falas engenhosas, teólogos, como Yves d’Evreux e Manoel da Nóbrega, cada um a sua maneira, demonstravam a possibilidade de livrar o gentio da degeneração e convertê-lo ao cristianismo, seguindo os preceitos, é claro, da verdadeira religião.

Para visualizar a diversidade de visões acerca do novo continente e seus habitantes, o livro avança através do pensamento de padres e filósofos até o século XVIII. Passando pelas obras de Antônio Vieira, Montaigne, Jean de Léry, De Pauw, Buffon, dentre outros – que caracterizaram o índio americano ora como o bom ou mau selvagem, ora como um ser passível ou não de salvação ante os elevados pressupostos da civilização européia –, Raminelli sublinha que, de uma forma ou de outra, os índios foram assimilados sob o mito do homem bárbaro, e sob o crivo da tutela e da colonização.

O segundo capítulo detêm-se na análise da ampla utilização do termo bárbaro por aqueles que retrataram as terras americanas. Se o conceito aristotélico serviu, na Antigüidade, para denominar todos aqueles que não pertenciam à civilização grega, com o objetivo de destacar a superioridade do povo grego; no século XVI, ao sabor das novas conjunturas, o vocábulo ganhou outros significados e colorações. Usando a noção de "pseudometamorfose", cunhada por Erwin Panofsky, Raminelli busca evidenciar as transformações que o barbarismo de Aristóteles sofreu ao ser deslocado de seu contexto original e utilizado no âmbito colonial da era moderna. Aqui essa palavra impregnou as representações sobre os ameríndios fundamentando a conquista e a necessidade de intervenção.

Depois de observar inúmeras imagens pictóricas produzidas entre os séculos XVI e XVII, que abarcam pintores portugueses, franceses e holandeses, o autor comprova que, ao contrário do que se esperava, esses desenhos não tiveram por inspiração ou fonte de pesquisa os textos daqueles que aqui estiveram mas, sim, foram baseados em alegorias divulgadas pelas iconografias européias. Talvez o desinteresse dos editores de Portugal em publicar as cartas e relatos dos jesuítas explique em parte o descompasso entre o conhecimento empírico produzido textualmente por aqueles que viram o Novo Mundo com seus próprios olhos e as cartografias, gravuras, mapas e pinturas daqueles que permaneciam distantes da realidade americana. Entretanto, como enfatiza o autor, mais interessante do que buscar as razões desse hiato existente entre texto e imagem, seria investigar a maneira pela qual esses estereótipos foram difundidos no interior da produção pictórica européia.

Após discorrer sobre alguns quadros que escolheram como tema a violência dos nativos, o martírio dos padres que trabalharam na catequização, os aspectos primitivos dos combates, a ausência de roupas e pudor, as técnicas primitivas de agricultura, todos frisando os costumes do homem selvagem, o autor irá estender-se nas imagens que focalizaram o canibalismo, para melhor elucidar como a barbárie ilustrada nessa iconografia estava imersa nos clichês do período.

O ritual antropofágico, enredo central do próximo capítulo, apesar de ser decorrente pelos documentos quinhentistas e seiscentistas, que sublinhavam a predominância masculina no comando da guerra e da vingança, foi retratado nas gravuras e telas européias com o sexo feminino como principal protagonista. Ao descrever um quadro de Theodor De Bry, o historiador salienta a excitação das índias desenhadas que mordem suas próprias mãos e braços em sinal de ansiedade. Numa outra tela, também de De Bry, comenta em mais detalhes o autor: "Um moquém assando braços, pernas e costelas ocupa o centro da gravura; ao redor, há índios comendo o repasto canibal. De um lado, há mulheres, duas delas saciam a vingança com membros: um braço e uma perna. A primeira mulher possui corpo escultural, seios firmes, alguns ornamentos e devora um braço sem perder os gestos de coquette; as velhas, em contrapartida, com rugas na testa, seios caídos, cabelos desalinhados e ralos, lambem os dedos e sorvem a gordura do morto" (p:96).

A divergência com as fontes escritas levaram Raminelli a perceber que a figura estereotipada da mulher nesses rituais foi construída sob o crivo da misoginia européia. Numa época de farta publicação contra as mulheres, de caça às bruxas, de perseguição às feiticeiras e às assembléias do sabá, as índias, na visão dos artistas, assumiam características de agentes demoníacas aliadas ao vício, aos malefícios, à perversão, ao apocalipse e aos desmandos de Satã. Quer dizer, as cenas canibais foram pinceladas em meio aos dilemas europeus latentes nos séculos XVI e XVII, resultando, dessa maneira, uma série de imagens que destoavam do cenário local.

No capítulo quarto, o autor irá aprofundar algumas dimensões desse imaginário demoníaco existente na Europa e o modo pelo qual seus preceitos foram determinantes na constituição dos desenhos que descreviam o novo continente. A idéia de uma América infernal, povoada por seres fantásticos, suscetíveis às seduções do Mal, fadados aos tormentos provocados pelos espíritos malignos, era recorrente nas gravuras de época. Peixes voadores, quadrúpedes com feições humanas, diabos com chifres, pés de ave e asas de vampiro, entes alados, em resumo, um verdadeiro bestiário medieval, foram derrotados pelo cristianismo no Velho Mundo e, por esta razão, teriam voado em grande quantidade para as terras do além-mar. Em face a esta balbúrdia, somente a sabedoria divina seria capaz de salvar as comunidades indígenas do jugo tirânico do demo.

A similitude dos sabás com os festins satânicos em solo americano não só comprovavam a demonização dos índios, mas também reafirmava a necessidade da salvação, catequese e da conquista que, nesse sentido, deixavam de ser apenas um jogo entre contrários, o bem e o mal, para assumir características políticas. Os infortúnios da colonização receberiam, portanto, um empreendimento racional e imprescindível.

Por fim, Ronald Raminelli debate a pequena disseminação da figura do índio no renascimento português. Os relatos do Novo Mundo não só passaram desapercebidos pelos editores do período, como pouco acrescentaram às discussões filosóficas e teológicas. Na perspectiva do autor, os pensadores lusitanos encontravam-se presos a pesquisas esclerosadas, há muito ultrapassadas pelos trabalhos dos demais intelectuais europeus. Os costumes exóticos ganharam uma abordagem superficial, tornando-se valiosos quando se referiam a algo que pudesse garantir o sucesso da colonização.

Para ilustrar tal fenômeno, Raminelli avança na discussão e compara o menosprezo ao ameríndio, um povo sem "lei, nem rei, nem fé", com o fascínio português pelos impérios da China e do Japão. Enquanto as editoras de Lisboa lançavam periodicamente volumes que dissertavam sobre as aventuras de viajantes pelos mares do extremo oriente e o elevado desenvolvimento destas populações, as brochuras acerca dos índios da América recebiam uma atenção bem menor.

Tendo sempre em vista os debates filosóficos e o contexto europeu da época, Ronald Raminelli perpassa todo livro delimitando a fabricação da imagem do índio americano sob o cenário da colonização com a intenção de ressaltar a dificuldade dos conquistadores do Novo Mundo em perceber as especificidades de uma outra cultura. As imagens aqui relatadas e analisadas demonstram que a percepção sobre os nativos não foi organizada tendo em vista as peculiaridades da vida local, mas sim a partir dos impasses em voga na Europa seiscentista.

Apesar do autor trabalhar com temas caros à Antropologia, como a figura do índio, a questão da alteridade, do contato entre culturas e da representação, o diálogo interdisciplinar é estreito, pois tanto a Antropologia quanto a História parecerem aqui penetrar com dificuldades em fronteiras alheias. Isto porque se, por um lado, Raminelli tece sua crítica aos etnólogos dos povos tupinambá, tais como Florestan Fernandes e Eduardo Viveiros de Castro, que, segundo ele, cristalizaram os eventos num eixo anacrônico por não levarem em conta as conjunturas da época; por outro, depois de traçar os enlevos dessa produção iconográfica européia que escolhe como tema o Novo Mundo, o autor se exime de uma análise sobre a dinâmica do contato cultural e suas ressonâncias em ambas as sociedades que, igual ao cenário político e ideológico da colonização, constituíram o pano de fundo dessa problemática.

Somente nas últimas páginas do livro, Raminelli evoca Marshall Sahlins e o debate sobre as transformações culturais através do contato, para afirmar que suas fontes não permitiriam uma maior aproximação com os embates antropológicos. Com isso, seu trabalho circunscreve essa produção no interior dos dilemas europeu do século XVI e XVII, sem arriscar, por exemplo, uma possível discussão sobre a maneira pela qual essa confecção de imagens foi também redimensionada pela cosmologia ameríndia.

Além de ser um livro muito bem escrito, Imagens da colonização deve ser considerado um trabalho de referência sobre a América portuguesa. Sua pesquisa abrangente em arquivos e bibliotecas possibilitou um fértil confronto entre texto e imagem, permitindo a análise não apenas das vicissitudes coloniais mas, principalmente, da incapacidade dos europeus em perceber e compreender a diversidade cultural dos povos do além-mar. Enfim, mesmo dominando uma vasta área territorial e seus habitantes, os conquistadores do século XVI demonstraram seu desinteresse em conhecer o outro. Ao se colocar no papel do colonizador europeu, Montaigne – para voltar mais uma vez ao ensaísta francês que se caracterizou como uma das poucas falas críticas do período – afirmou de modo irônico: "Tudo abraçamos, mas não apertamos senão o vento"2.

Notas
1 Michel de Montaigne. "Dos canibais" in Ensaios, São Paulo, Abril Cultural, coleção Os Pensadores, 1972:104.

2 Idem.

Revista de Antropologia

Crime e loucura – o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século

Sérgio Carrara. Crime e loucura – o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro, Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1998, 22 pp.

Gabriel Figueiredo
Professor titular de psiquiatria – FCM/PUC Campinas
Sumário da obra

Posicionando-se como quem acredita ser a loucura, em grande medida, uma linguagem utilizada para fins de controle social, Sérgio Carrara vai discuti-la neste livro, na sua interface com o crime.

O autor adota dois conceitos, os de crime-doença e de crime-atributo a fim de fundamentar sues argumentos. Para enfocar o primeiro ocupa-se da psiquiatria alienista francesa do século XIX, através das monomanias, de Jean Étienne Dominique Esquirol, e das degenerações, de Benédicte Augustin Morel. Para examinar o segundo se ocupa da antropologia criminal italiana da segunda metade do século XIX, representada por Enrico Ferri, Cesare Lombroso e Rafaelle Garofalo.

A partir destes conceitos, Crime e loucura organiza um painel de discussões entre psiquiatras alienistas brasileiros com a medicina legal e o Direito penal. Este painel tem como roteiro polêmicas envolvendo um jovem homicida, cujo crime foi cometido em abril de 1896. Como pano de fundo estão os debates entre liberais e positivistas.

Assim, o autor organizou o contexto no qual aparece, em 1903, o manicômio judiciário no Brasil como proposta oficial, evento que ele considerou, num certo sentido, um "monumento ao triunfo da psiquiatria" (pg. 220).

Conclui dizendo que "ao serem levantados os muros do manicômio judiciário, emparedava-se o conflito e aqueles sobre os quais ele se projetava; emparedava-se uma concepção da pessoa humana que, mesmo incompatível com qualquer sistema de regras morais, impunha-se, através da ciência, em um mundo inebriado pelo progresso" (pg.199).

Num posfácio recente, já que o livro é resultado da dissertação de mestrado do autor, apresentada na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1988, ele termina conclamando o leitor para transformar os manicômios judiciários em algo mais justo e humano.

Desenvolvimento e Discussão

O autor começa o livro construindo seu objeto de pesquisa. Revela sua inexperiência informando que nunca havia entrado num manicômio judiciário. Vai mais longe: declara que foram de ordem emocional as razões que lhe fizeram debruçar, preferencialmente, sobre dados históricos e não "etnográficos" (as aspas são dele).

Além da inexperiência diante da instituição e da presença de fatores emocionais interferindo na construção do objeto de pesquisa (o que é raro os pesquisadores admitirem), há também uma questão acadêmica relevante: a metodologia.

Ao decidir-se por um caminho que é mais dominado pelo historiador do que pelo antropólogo, o autor sentiu-se ambivalente. Resolveu a ambivalência(?) organizando um espaço que ele denominou "aldeia-arquivo". "Aldeia" pelo seu inevitável olhar de antropólogo e "arquivo" pela sua pretensão de historiador.

Com esta dupla identidade, procurou matéria em bibliotecas (Nacional, Academia de Medicina, Manicômio Judiciário Heitor Carrilho) e no I Tribunal do Juri do Rio de Janeiro. Completou seu material com jornais da época, livros e artigos especializados.

Cumprido o capítulo metodológico, o livro dedica-se à problemática do crime no final do século XIX, inícios do XX, lembrando o leitor que este foi um tema de grande interesse não apenas do "mundo científico" (as aspas são dele), mas também da imprensa popular e do romance policial.

Considera dentre as classificações dos criminosos, a do italiano Enrico Ferri, como a mais amplamente aceita: "criminosos natos", "criminosos loucos", "criminosos por paixão", "criminosos por hábito".

Associa as classificações dos criminosos com as da medicina "científica" (as aspas são dele), e conclui que os adeptos da Escola Positiva de Direito penal entendiam ser necessário fazer, em relação aos criminosos, o mesmo que os alienistas já haviam feito com os loucos. É dentro deste espírito que o autor abre o espaço que desejava para colocar em tela o criminoso como objeto da patologia e da antropologia criminal.

Parece um tanto reducionista, em nossa opinião, a relação classificação de criminosos com classificação de alienados. Sistematizar e classificar já era uma imposição iluminista. Todos lembramos que os movimentos ligados às classificações científicas, tomam corpo na Segunda metade do século XVIII e invadem o XIX. Foi assim com a química de Lavoisier, com a botânica de Lineu, com as doenças humanas de Sauvages...

Como objeto da patologia, o criminoso é examinado no livro através das monomanias e das degenerações.

Apoiando-se em Henry Maudsley, psiquiatra inglês do final do século XIX, Carrara nos mostra as monomanias raciocinantes e as monomanias instintivas. Ressalta que as primeiras, na Inglaterra eram conhecidas como loucura moral.

Ao juntar as monomanias (delirantes, raciocinantes e instintivas), Crime e loucura nos proporciona um cenário para a apreciação do crime-doença como espécie de "culpa sem razão" ou "de uma razão sem culpa" (p. 75).

A abordagem das monomanias estaria completa não fosse a análise que o autor faz do seu declínio em favor das degenerações. Neste meio de tempo, entre o declínio das primeiras e a ascensão das segundas, houve um momento decisivo em 1822 na França: Antoine Laurent Jessé Bayle, estudando através de necropsia e de evoluções clínicas a Paralisia geral, comprovou que mania, monomania e demência poderiam estar, todas reunidas, numa mesma doença. Esta descoberta foi tão decisiva, que o método anatomoclínico tornou-se paradigma para a psiquiatria do século XIX e parte do XX. Liquidou com a classificação de Pinel e Esquirol. Abriu espaços para o surgimento de outras Escolas psiquiátricas. Aquilo que nós conhecemos hoje como a Escola alemã, despontando no final do século XIX como a mais importante, também nasceu daí.

Respeitando este espaço histórico não enfatizado, vamos para as degenerações. Aqui Sérgio Carrara nos proporciona um bom texto.

Recorrendo a uma excelente tese de medicina1 publicada em Paris em 1913, que discute as origens e a evolução da idéia de degenerescência em psiquiatria, o livro oferece ao leitor um entendimento sobre as obras de Morel e Magnan.

A abordagem sobre as degenerações mostra ao leitor a importância da etiopatogenia em medicina e o conduz a acompanhar a teoria de Morel sobre hereditariedade e loucura.

E assim, como nos mostra Crime e loucura, as monomanias viram degenerações, só que agora com status etiopatogênico, hereditário. O louco moral vira degenerado moral.

Desta forma Sérgio Carrara nos proporciona uma reflexão para o conceito de crime-doença, agora mais de acordo com o pensamento médico da época, que no dualismo cartesiano já havia se decidido pelo reducionismo biológico, e que no plano das influências mais recentes sentia a presença de Auguste Comte.

Sentimos a falta de uma melhor contextualização das teorias de Morel pelo autor. Facilitaria, se fosse proporcionado ao leitor, sobretudo os não especializados, a lembrança de que, por ocasião do aparecimento das idéias de Morel sobre hereditariedade e loucura, nem as ervilhas de Mendel eram conhecidas, quanto mais a drosophila melanogaster, de Morgan. Voltaremos adiante a mais alguns problemas de contextualização que o livro apresenta.

Na abordagem sobre o criminoso nato, pela primeira vez no livro um dos autores diretamente envolvido nas discussões entra também diretamente em cena: Cesare Lombroso visita a aldeia-arquivo de Carrara, de passagem.

O autor ressalta a utilização da teoria da degenerescência a serviço do ativismo e da involução por Lombroso, que a partir daí, traçou o perfil do criminoso nato criado por Ferri.

É dentro desta relação morelombrosiana, que Crime e loucura revela ao leitor o impacto sofrido pela nascente psiquiatria brasileira: "O que fazer deles (criminosos natos ou degenerados)?" "Para onde enviá-los?

Na medida em que vai nos contando através dos jornais da época a triste sina de um jovem homicida, vai também este capítulo nos revelando, por intermédio dela, as discussões envolvendo os alienistas com a medicina legal e o Direito penal.

São destacadas as posições do psiquiatra alienista João Carlos Teixeira Brandão e do médico legista Raimundo Nina Rodrigues. Neste ponto entra também, na opinião deste resenhista, problemas de contextualização. Vamos abrir um pequeno espaço para considerar a respeito.

Na época de Teixeira Brandão e Nina Rodrigues, as Escolas de psiquiatria mais respeitadas do mundo eram as francesas e alemã. Em ambas ainda se acreditava nas degenerações. Os alemães, com algumas reservas, introduziram a expressão psicopatias constitucionais, porém admitiam, como fizeram Juliano Moreira, Afrânio Peixoto, Henrique Roxo entre outros seguidores desta Escola, a expressão estados atípicos de degeneração como sinonímia.

Nesta mesma época não custa lembrar, por exemplo, que os negros, coisificados durante séculos no Brasil, mal se identificavam como homens livres nesta passagem do século XIX. O DNA então só veio em 1945 e sua aplicação aos estudos da evolução humana agora, em 1984.

Se, um autor, para lidar com as questões que Crime e loucura levanta, não estiver atento para esta contextualização, desorienta-se.

Há uma certa desorientação neste capítulo, refletida entre outras coisas, na maneira hostil como o autor trata Teixeira Brandão e Nina Rodrigues.

Após estas considerações prossigamos: Carrara deixa transparente que a posição de Teixeira Brandão, de separar a convivência do louco comum com o louco criminoso, foi majoritária na psiquiatria alienista brasileira. Foi isso mesmo que aconteceu. A posição de Brandão era majoritária. Juliano Moreira, Franco da Rocha e muitos outros pensavam assim, em desacordo com Nina Rodrigues. Nesta correlação de forças está um componente histórico e social importante para o surgimento do manicômio judiciário no Brasil. Crime e loucura considera este evento como um "monumento ao triunfo da psiquiatria".

O êxito que a psiquiatria obteve ao separar o louco comum do louco criminoso pode ser visto como um triunfo dela, como vê o autor. Eu aqui, como um simples psiquiatra que vive às voltas, no cotidiano, com as doenças mentais, há mais de um quarto de século, vejo neste episódio a fragilidade da psiquiatria.

Na sua incapacidade de dar conta sozinha do problema, a nascente especialidade médica chamou, literalmente, a polícia, para grosso modo resumir. Se tivesse continuado no Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, além de pesquisador, Sérgio Carrara teria tido oportunidade de entender melhor o significado da relação complicada que ele viu, entre terapeutas e guardas (p. 35), como um herança desta fragilidade que ainda hoje se pronuncia.

Atualmente, o problema do crime-doença continua sendo desafiador para a psiquiatria, sobretudo se cair no espaço dos transtornos de personalidade anti-social (os pepezões que o autor refere na pg. 38). Estudos de concordância entre gêmeos, aumento da atividade de neurotransmissores, testosterona, do limiar de endorfinas, entre outros achados no campo biológico são temas em discussão. O desenvolvimento da teoria psicanalítica vem revelando descobertas interessantes desde Freud, e que incluem fixações em estágios anteriores do desenvolvimento sexual, rigidez de mecanismos de defesa e relações objetais internas perturbadas. As linhas de pesquisa propostas por Ellenberger2 estão abrindo caminhos através da etnopsiquiatria.

Crime e loucura é lançado num momento oportuno. Polêmico e instigante surge num final de década onde vem se aquecendo as discussões sobre a reforma psiquiátrica brasileira.

Dois dos mais citados autores do livro, Robert Castel e Michel Foucault, penso que se veriam nesta obra de Sérgio Carrara. Talvez discordassem num só ponto, no da esperança do autor em transformar o manicômio numa instituição justa e humana. Castel apoiaria. Foucault rejeitaria: no seu mundo panóptico não entra sequer um fio de esperança.

Notas

1 Uma tese de medicina intitulada "Histoire des origines et de l’évolution de l’idée de dégénérescence en médicine mentale", de Genil-Perrin, G.P.H. (Paris, Alfred Leclerc, 1913) é um dos mais conhecidos trabalhos sobre a teoria da degenerescência. Ao lado do "Traité des dégénérescences" (Morel, 1857) e das "Leçons cliniques" (Magnan, 1891) a tese é obrigatória para os estudiosos de Morel e Magnan.
Nesta tese, Genil-Perrin examina, com rara competência, não apenas as obras destes dois alienistas, como também o impacto que elas provocaram.

2 Conforme Ellenberger, H.F. (Paris, Encyclopédie médico-chirurgicale – psychiatrie – 1965), a etnopsiquiatria deve responder a cinco problemas gerais:

1) A noção da doença mental é universal ou relativa a uma cultura em particular?
2) A doença mental é a mesma num país e no outro ou é apenas o produto de uma cultura particular?
3) Em que medida os costumes, as crenças, os consentimentos, o comportamento ambiental e da coletividade influi no quadro clínico?
4) Como se distribui e se define a doença mental em um grupo étnico?
5) Em uma determinada cultura quais os fatores que favorecem a gênese das doenças mentais?

Assim, está ficando cada vez mais difícil dissociar cultura das concepções de doença mental. É nela que se estrutura valores, regras, comportamentos, limites... E é também dentro dela que se decide o que é normal ou não. Dentro deste espírito tem sido possível reconhecer doenças mentais planetárias tais como esquizofrenia, transtorno bipolar, algumas depressões entre outras. Também tem sido possível reconhecer síndromes ligados a determinadas culturas, tais como bulimia (América do Norte), piblokto (entre os esquimós), nervios (América Latina), empacho (México), Latah (Sudeste Asiático) e outras mais.

Revista de Antropologia

domingo, 18 de novembro de 2018

OS CARRASCOS VOLUNTÁRIOS DE HITLER - O POVO ALEMÃO E O HOLOCAUSTO

A lua-de-mel do capitão

Renato Lessa

DANIEL GOLDHAGEN
uma das muitas mitologias construídas a respeito do Holocausto destaca a presença de um gigantesco mecanismo de assassinato em escala industrial. O horror de Auschwitz é o ícone e a evidência dessa percepção. Duas teriam sido as principais características daquele experimento: a possibilidade de eliminar um número assustador de pessoas, com reduzido investimento temporal e espacial, e a diluição da culpa, já que o atributo "industrial" sugere a presença de dimensões tais como automatismo, máquina e complexidade organizacional, eliminando assim o contato diádico, a dimensão pessoal.
Nada mais distante disso que o cenário revelado por Daniel Goldhagen ao analisar três instituições centrais na matança dos judeus durante o Holocausto: os batalhões policiais, os campos de trabalho e as marchas da morte. Cada uma delas revela o peso fundamental da adesão voluntária de alemães comuns aos atos de extermínio.
No limite, nem sequer dimensões da vida privada e íntima dos perpetradores estiveram distantes de suas ações no genocídio. Em junho de 1942, um certo capitão Julius Wohlauf decidiu erradicar a vida dos judeus de Jósefów, pequena cidade do universo judaico polonês. Pouco após o massacre, o capitão recebeu a visita de sua recém-esposa Vera. Frau Wohlauf permaneceu em cena e acompanhou seu marido, com interesse e envolvimento direto, nos massacres seguintes de Lomazy e Miedzyrzec. A jovem transitava com seu bastão de montaria entre camaradas e corpos; Goldhagen nos dá a chave desse pequeno evento: "Foi assim que Frau Wohlauf passou a sua lua-de-mel".
"Os Carrascos Voluntários de Hitler", do cientista político americano Daniel Jonah Goldhagen, é um livro extraordinário. Tanto as suas virtudes quanto suas lacunas decorrem da natureza ousada de seu experimento. Trata-se de entender o Holocausto tendo por referência básica as ações de pessoas comuns, no uso regular de suas faculdades morais e cognitivas. O que interessou a Goldhagen não foi a suposta disseminação pela sociedade alemã, sob o nazismo, de autômatos sociais e morais, seres movidos por uma obediência cega e uma virtual suspensão de qualquer capacidade de juízo. As pessoas que participaram da matança de judeus estavam convencidas de que as ações em que estiveram envolvidas, como perpetradores ou testemunhas, faziam sentido. Ou seja, pertenciam à ordem das possibilidades.
A estratégia analítica de Goldhagen tem como premissa a centralidade do Holocausto na história política e cultural alemã. Trata-se, em suas palavras, "da realização definidora da política e da cultura alemãs durante o nazismo" e do "marco da renúncia alemã à comunidade dos povos civilizados". Em termos menos acusatórios, o que se propõe é uma inversão nos termos usuais: não mais buscar na sociedade alemã sob o nazismo as causas do Holocausto, como se ele fosse um efeito ou um epifenômeno, mas revelar no Holocausto o funcionamento e a racionalidade alucinada do nazismo: "Explicar o Holocausto é o cume do entendimento da Alemanha durante o período nazista". O Holocausto não resulta do nazismo, ele é o próprio nazismo e o "desaguadouro expressivo" da sociedade alemã naquele período. A recusa da alteridade do Holocausto com relação à sociedade alemã exige que se ponha no centro da análise o estudo dos perpetradores.
O estudo das vítimas, ênfase dominante nas análises consagradas sobre o Holocausto, pouco revela a respeito das razões da matança. Nenhuma característica própria das vítimas é capaz de explicar as razões de sua erradicação. O anti-semitismo, como visão de mundo, revela tão somente a natureza do anti-semita e a "rationale" dos que agem em seu nome. É somente mediante essa visão de mundo que os judeus podem ser percebidos e revelados como objetos naturais de políticas e ações de erradicação.
Daí decorre a necessidade de "colocar os perpetradores no centro de nossa compreensão sobre o Holocausto". Para que isso seja possível, algumas proposições devem ser estabelecidas. Quem são os perpetradores? Aqui, talvez em uma das passagens mais duras do livro, Goldhagen não deixa margem a dúvidas: os "alemães" foram os perpetradores. Assim como os "americanos" estiveram no Vietnã -e essa é uma descrição que não parece estranha a nossas narrativas ordinárias sobre o mundo e sua história recente-, os "alemães" estiveram na Polônia e na União Soviética etc. e procederam a uma escala de extermínio inédita.
A designação "alemães" tanto indica que foram "muitos" os que estiveram envolvidos com as atividades de matança física e social dos judeus, como desfaz a mitologia de que o extermínio foi uma atividade desempenhada por agentes extraordinários e especializados, movidos por uma obediência tão cega como temerosa diante de determinações superiores. Além disso, a designação permite retornar a um tema tão repetido quanto inconcluso: o da disseminação do anti-semitismo pela sociedade alemã. Para tornar persuasiva a tese, aparentemente trivial, de que o anti-semitismo como visão de mundo jogou um papel decisivo na matança e degradação dos judeus durante o nazismo, Goldhagen descarta cinco modalidades tradicionais de explicação das ações dos perpetradores. Em termos resumidos, as teses são as seguintes:
1. Tese da coerção externa: os perpetradores não possuíam outra opção a não ser cumprir ordens, sob ameaça de punição;
2. Tese do cumprimento cego de ordens: aqui os argumentos indicam como forças motrizes o carisma de Hitler, a tendência alemã ou humana a cumprir ordens, os efeitos de uma sociedade totalitária sobre as energias morais dos indivíduos;
3. Tese da pressão social e psicológica: a pressão do costume e os custos de assumir um comportamento desviante teriam como resultado a aceitação, e o eventual cometimento, de políticas e ações genocidas;
4. Tese do interesse próprio: a participação no Holocausto teria como pano de fundo a perspectiva de ascensão burocrática e de ganhos pessoais por parte dos perpetradores;
5. Tese da miopia burocrática: a divisão do trabalho e a modernidade do Holocausto, como megaevento complexo, teriam impedido a percepção por parte dos seus agentes infinitesimais da monstruosidade de seu resultado agregado.
As teses enumeradas, de acordo com Goldhagen, podem guardar ainda algum poder explicativo localizado, mas possuem uma vulnerabilidade comum: tomam como evidente que as pessoas são levadas a cometer atos contrários a seu foro íntimo. O que dizer diante de uma população, ou de uma parte considerável dela, na qual o foro íntimo autoriza ações de extermínio e degradação de coletividades julgadas abjetas? O mínimo a declarar é que novas modalidades de explicação devem ser mobilizadas.
Desde Aristóteles, sabemos que as operações básicas da vida ordinária são sustentadas por proposições de caráter moral e normativo, que tanto indicam um certo conjunto de obrigações sociais e políticas como autorizam um certo âmbito de decisão e escolha individuais. Aristóteles tratou do problema ao desenvolver a sua teoria sobre os entimemas. Estes são proposições de caráter geral que, embora não tenham o conteúdo necessário de verdade de sentenças matemáticas ou lógicas que operam como premissas maiores em enunciados dedutivos, orientam as ações humanas em contextos de escolha social. A caracterização feita por Goldhagen do anti-semitismo alemão indica que os juízos e proposições acerca do caráter abjeto e nocivo dos judeus tinham a força de poderosos entimemas.
A aproximação entre os enunciados anti-semitas e a lógica dos entimemas nos ajuda a perceber de que modo o anti-semitismo não foi uma simples ideologia. Na verdade, ele ocupou um papel muito mais básico, como o alicerce sobre o qual a estrutura cognitiva dos alemães a respeito de si mesmos e de sua sociedade acabou por se configurar. No limite, trata-se de não mais dizer que a cultura alemã está impregnada de anti-semitismo, mas declarar que a cultura alemã se estrutura como anti-semitismo. Esse parece ser o argumento de Goldhagen e, talvez, um dos pontos de maior vulnerabilidade de seu livro.
Sua investigação a respeito das raízes do anti-semitismo alemão são rápidas, se levarmos em conta a centralidade do fenômeno para toda a explicação. Isso não retira um milímetro de plausibilidade do que se sustenta. Com efeito, o argumento não só pretende tomar como evidências exemplos de proposições anti-semitas na história cultural alemã (Lutero, por exemplo), como inclui uma legião de "amigos" dos judeus. O próprio filo-semitismo revela, assim, seu ânimo antijudaico: ele sustenta que, uma vez eliminadas as condições sociais e culturais inferiores às quais os judeus empíricos estão submetidos, todas as suas bizarrias, caturrices e vícios estariam superados. Os judeus, e seu comportamento social declarado nocivo, poderiam ser erradicados do mapa social não por qualquer eliminacionismo genocida, mas por sua benévola promoção social. São esses os termos da concepção ecológica do judaísmo, no século 19, tão facilmente reconhecíveis nas páginas da "Questão Judaica", de Karl Marx.
A plausibilidade da hipótese não suspende um conjunto de dúvidas procedentes. A principal é saber a extensão dos não-perpetradores, dos que não se identificam com a matança e com a degradação dos judeus. Em que medida a designação "alemães" não oblitera um conjunto expressivo de "outros alemães" não nazificados? É evidente que se trata de uma outra pesquisa de natureza empírica, cujo ponto de partida pode ser, simplesmente, aceitar como relevante o fato de que nas eleições de 1933, que conduziram Hitler ao poder, os nazistas conquistaram 43% dos votos alemães (17.277.200). Comunistas e social-democratas, em cujos mapas cognitivos o anti-semitismo não figurava, conquistaram respectivamente 4.848.100 e 7.181.600 votos. O que se passou cognitiva e moralmente com essas 12.000.000 de pessoas durante o nazismo, mesmo sabendo que muitas entre elas nem sequer tiveram tempo para pensar a respeito? Mas, ainda que seja crucial perseguir essa curiosidade, em termos agregados o Holocausto foi um evento alemão, determinado e dirigido pelo "mainstream" da cultura alemã, tal como revelada de forma expressiva no nazismo. Com relação a esse aspecto, o livro de Goldhagen é um ponto de não-retorno.
A suposição do autor é que na alvorada do nazismo o anti-semitismo foi retirado dos sótãos alemães. A novidade do nazismo teria sido permitir a livre expressão desse traço permanente e a sua radicalização em torno de uma concepção "eliminacionista" do anti-semitismo. A tese de Goldhagen é heterodoxa e provocativa no que diz respeito à periodização histórica. A violência anti-semita não teria sido possível até as duas primeiras décadas do século 20 graças às características institucionais e políticas do regime guilhermiano. Com efeito, a estruturação aristocrática e autoritária da política alemã sob o império do Kaiser não permitiu o livre curso de expressões e motivações fortes, porém difusas e ainda não organizadas, tais como o anti-semitismo. A livre expressão e organização da fúria anti-semita, em sua vertente eliminacionista, só foi possível com a democracia da República de Weimar, percebida pelos anti-semitas como um monstruoso mecanismo judaico de destruição do Reich alemão. Contido em um regime autoritário e liberado em uma República democrática, o anti-semitismo encontra suas condições ótimas de expansão e realização com o nazismo.
O alcance dessa realização deve ser aferido na participação de alemães comuns nos engenhos e ações de extermínio. E nada melhor do que a consideração de eventos que, na pesquisa de Goldhagen, tiveram um papel de testes cruciais. Tais eventos dizem respeito a situações nas quais teria sido possível aos perpetradores evitar a prática de crueldades e assassinatos. É esse o papel que cumprem no livro as análises dos batalhões policiais, dos campos de trabalho e das marchas da morte.
Acompanhando as ações dos primeiros, já estudadas por Christopher Browning, aprendemos que não há nada mais distante da morte fria, impessoal e industrial do que o assassinato diádico de seres indefesos. Para os assassinos era impossível deixar de ouvir gritos, súplicas e urros de desespero, tanto quanto evitar a "sujeira" dos materiais humanos implodidos em cada corpo. No entanto, Goldhagen nos revela que a esses "soldados" foi dada com frequência a possibilidade de não participar dos atos de matança, o que raramente foi aceito.
O tratamento dos campos de trabalho ocupa a parte mais curta do livro. Mas o espaço é suficiente para revelar a concepção nazista a respeito das relações entre os judeus e o trabalho. Este é percebido como um atributo humano, compartilhado até pelos escravos. Mas não por judeus: por se situarem fora da humanidade a sua incompatibilidade com o trabalho é completa. Os campos de trabalho só podem significar morte e sofrimento. Dessa forma, são a materialização completa da visão de mundo nazista, encobrindo qualquer necessidade material. Mesmo sob condições de escassez de mão-de-obra, os campos de trabalho judeus seguem sendo locais de extermínio.
As marchas da morte exibem com maior eloquência os sinais de autonomia moral e liberdade dos perpetradores. Na fase final da guerra, diversos campos são evacuados por meio de longas marchas, durante as quais a crueldade e mortificação costumeiras são perpetradas. O notável nesse experimento é que, com o caos dos últimos meses da guerra, os guardas que conduzem essas marchas não estão em condições de receber qualquer ordem superior. Da mesma forma, os vínculos institucionais práticos estão dissolvidos. No entanto, eles decidem, até o fim, manter a escala de infortúnios rotineira. Sem qualquer limitação ao exercício de seu juízo e foro íntimo, esses alemães decidiram pela continuidade do engenho da morte. Tal como na lua-de-mel de Vera Wohlauf, aqui se apresentam os efeitos da ideologia alemã.
Os perpetradores do Holocausto foram protagonistas de uma revolução moral e cognitiva. É esse o achado desse brilhante livro. Ainda que crítico e iconoclasta com relação a seus antecessores, ele se associa ao importante esforço de investigação sobre o Holocausto desenvolvido por Lucy Davidowicz, Raul Hilberg, Martin Gilbert, Leni Yahl, Israel Gutman e Saul Friedlãnder. O impacto desse novo livro deve iluminar a incipiente discussão acerca do impacto do Holocausto sobre a filosofia política e moral deste século. Há muito o que fazer neste sentido, complementando esforços tais como os de Horkheimer, Adorno e Bauman. No entanto, as bases desse empreendimento estão dadas: elas dizem respeito à possibilidade de que seres humanos normais, mobilizando suas capacidades plenas de juízo e discernimento, se devotem ao macabro experimento de erradicar coletividades alheias.
Renato Lessa é diretor executivo do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Folha de São Paulo